A divergência entre médicos e pacientes sobre o uso de implantes hormonais marcou na sexta-feira (22) a sessão de debates temáticos promovida pelo Senado para discutir a proibição desse tipo de dispositivo por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A decisão da agência sobre os implantes hormonais manipulados, alguns deles conhecidos como “chips da beleza”, foi revista também na sexta. Mas, durante mais de seis horas de debate, os especialistas não chegaram a um acordo sobre o tema.
O autor do requerimento para a realização do debate, senador Jorge Seif (PL-SC), argumenta que a proibição, embora tenha sido baseada em boas intenções, não teve as implicações analisadas no âmbito legislativo ou em audiências públicas com especialistas no assunto, o que é essencial. Para o senador, a decisão vai contra a liberdade médica para escolher o tratamento mais adequado ao paciente.
— A resolução gerou questionamentos importantes sobre insegurança jurídica, pois afeta diretamente profissionais e estabelecimentos que seguiam as normativas anteriores. A falta de clareza e previsibilidade nas decisões regulatórias não apenas compromete a confiança no sistema, mas também coloca em risco a continuidade de tratamentos médicos essenciais — disse Seif na abertura da sessão.
A decisão da Anvisa que motivou a audiência havia sido anunciada no dia 18 de outubro e suspendeu a manipulação, a comercialização, a propaganda e o uso de implantes hormonais manipulados. A medida, de caráter preventivo, foi adotada a partir de denúncias apresentadas por entidades médicas, entre elas a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), que apontaram o aumento no número de atendimentos de pacientes com problemas gerados por esse tipo de dispositivo.
A agência revogou a resolução que suspendeu a produção desse tipo de implante. A nova resolução da Anvisa mantém proibidos apenas os implantes para fins estéticos e de performance (por exemplo, os anabolizantes). Também fica proibida a propaganda de novos produtos, incluindo a veiculação nas redes sociais e a venda de cursos. O entendimento é o mesmo de recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM) feita em abril.
— Ficou claro que a Anvisa, naquela preocupação legítima de tentar evitar um dano à saúde pública, acabou cometendo um certo exagero ao fazer uma proibição geral, ampla e irrestrita. A posição que o CFM adotou naquela época era de modular a decisão para proibir especificamente o uso estético e o uso para ganho de performance, e liberar a produção, comercialização e venda para fins clínicos em geral — explicou o vice-corregedor do CFM, médico infectologista Francisco Eduardo Cardoso, ao comemorar a nova decisão da Anvisa.
Ele informou que será criado um grupo de trabalho com a participação do CFM e da agência para reunir as evidências disponíveis e regulamentar de maneira mais sólida o uso desses implantes. Para Cardoso, é preciso punir o médico que atuar fora das regras.
Durante o debate, médicos defensores dos implantes argumentaram que esse tipo de dispositivo é utilizado não apenas para fins estéticos, mas também em casos de tratamentos hormonais específicos, a exemplo do hipogonadismo (deficiência de testosterona), da puberdade tardia e da endometriose. Para muitos deles, a proibição irrestrita poderia gerar descontinuidade em tratamentos legítimos, prejudicando pacientes que dependem desses implantes.
O médico ginecologista Walter Pace defendeu o uso de implantes como uma ferramenta eficaz e segura para os pacientes. Tanto ele quanto o médico do esporte e do exercício Francisco Tostes lembraram que a gestrinona, um hormônio esteróide sintético apontado como de uso estético por críticos, já teve versão comercial (não manipulada) que foi retirada do mercado por falta de interesse econômico dos laboratórios. A indicação era para o tratamento de endometriose. Para Pace, a medicina caminha para uma individualização cada vez maior, que é facilitada pelos implantes manipulados.
— Quando se fala de implante hormonal, eu queria que as pessoas entendessem que isso é uma via de administração de hormônios e ponto, não passa disso. É uma via, e se é uma via é a mesma coisa que estivessem interditando o comprimido, [dizendo que] a partir de hoje nós não vamos poder mais usar o comprimido. A gente condena a substância que está ali naquela via, mas não a via, até porque o implante traz várias vantagens sobre as outras vias: não tem a primeira passagem pelo fígado, a quantidade de substância é muito menor, e eu posso individualizar. Condenar a via chega, para mim, às vias do maior absurdo, a maior arbitrariedade que eu já vi na minha vida — criticou.
Tanto ele quanto o endocrinologista Diogo Pinto Viana condenaram o uso do termo “chip da beleza”, que, na visão deles, é usado de forma pejorativa e distorce o objetivo do tratamento, que pode ser terapêutico. Eles também lembraram que o uso desse tipo de implante é feito há décadas.
O senador Magno Malta (PL-ES) disse ter uma filha que sofre de endometriose e defendeu os implantes como meio de tratamento de doenças. Para ele, há um lobby da indústria farmacêutica contra tratamentos que beneficiam a população.
— Parece que o assunto vida humana representa muito pouco. As pessoas estão atrás dos seus próprios interesses e o desinteresse é total quando se trata da questão da vida humana. Uma das coisas mais erradas que nós criamos no Brasil foram as agências [reguladoras]. As agências não têm quem as vigie. Foram criadas exatamente para serem vigilantes de determinadas áreas. A Anvisa, por exemplo, eu não sei porquê mudou de posição tão rápido, de ontem para hoje — questionou.
O advogado Paulo Liporaci também defendeu limites para as agências reguladoras e afirmou que há dúvidas sobre o uso de critérios técnicos para embasar as duas decisões da Anvisa. Ele lembrou que a proibição dos implantes não evita o uso indiscriminado de terapias hormonais para fins estéticos, porque as outras vias de administração ainda estão disponíveis.
A mastologista do Instituto Nacional de Câncer (Inca), Rosemar Rahal, afirmou que o que está sendo chamado de decisão monocrática pelos defensores dos implantes, na verdade foi uma decisão tomada pela Anvisa com base nas manifestações de 35 sociedades médicas. Ela citou o aumento na incidência do câncer de mama, que na grande maioria dos casos é hormoniodependente e associou o aumento dos casos com o uso indevido de hormônios. Muitos desses tratamentos de implantes, na visão da especialista, não têm confiabilidade e nem respaldo em evidências científicas e a indicação muitas vezes atende ao “mercantilismo da medicina”.
— Em nome da Sociedade Brasileira de Mastologia, eu agradeço essa oportunidade mas ao mesmo tempo eu me entristeço, porque eu estou aqui com tantas questões do SUS [Sistema Único de Saúde] para serem discutidas com vocês, tantas pessoas precisando de ter essas bancadas para discutir questões quem está morrendo por tantos problemas sérios, e nós estamos aqui discutindo uma coisa que não tem respaldo científico. Isso me entristece — lamentou a médica, que integra a diretoria da Sociedade Brasileira de Mastologia.
O médico endocrinologista Clayton Macedo afirmou que há um sistema de “apologia ao uso indevido de hormônios”, que muitas vezes envolve profissionais sem qualificação na área. Ele denunciou a existência de cursos de fim de semana para formar “especialistas em hormônios”, ministrados inclusive por médicos presentes na sessão de debates. De acordo com o especialista, os hormônios são anunciados nas redes sociais como solução para várias situações, como fadiga, diminuição da libido e envelhecimento. Mas o uso desse tipo de solução se tornou um grande problema de saúde pública.
— Eu gostaria de deixar esse pedido de reflexão. Ninguém é contra tratar a doença e tratar bem os pacientes. Nós não queremos é que os pacientes sejam usados como escudo para explicar esses e outros maus usos. (...) Há a questão da proibição, também, da publicidade porque eles vão para as redes sociais prometendo tudo para os pacientes, que, na ânsia de ficarem bonitos, definidos, mais jovens, caem nesse canto da sereia — alertou o médico, que coordenou o projeto Vigicom, desenvolvido para monitorar os efeitos colaterais dos tratamentos hormonais.
O médico protestou contra informações passadas por alguns colegas na sessão e disse que não eram respaldadas por estudos científicos. Ele sugeriu ao senador Jorge Seif que checasse a titulação dos médicos com os quais teve reuniões antes de marcar a sessão temática e que ouvisse as sociedades representantes das especialidades, que têm profissionais com qualificação para contribuir para o debate.
O senador afirmou ter conversado com vários médicos e também ter recebido sugestões de senadores e indicações por whatsapp. Ele ressaltou a presença de médicos com opiniões favoráveis e contrárias no debate e afirmou que todas as sugestões de debatedores foram aceitas. Para ele, o objetivo tem que ser o bem-estar dos pacientes.
A médica ginecologista Mariana Waik falou sobre a importâancia dos implantes para os pacientes em transição de gênero. Ela afirmou que muitos deles fazem uso dos implantes porque as outras vias trazem problemas como a fobia de agulhas e os picos hormonais, no caso dos hormônios injetáveis; a toxidade ao fígado, o desconforto gástrico e o aumento de efeitos colaterais, no caso da via oral; e os problemas na absorção e a transferência (contaminação cruzada) no caso da via transdérmica (aplicação na pele).
— Na comparação que a gente faz entre as vias, a gente vê que a via de implantes hormonais tem uma vantagem porque dissolve lentamente, são doses fisiológicas diárias, então o risco de picos hormonais é muito menor, os níveis plasmáticos dos hormônios ficam mais constantes e a gente tem uma melhora na adesão porque são uma a duas aplicações por ano e não tem esse risco de transferência para o parceiro, para o filho — enumerou a ginecologista.
Na mesma linha, o médico endocrinologista Guilherme Renke lembrou que alguns hormônios não possuem biodisponibilidade oral, ou seja, se forem ingeridos por comprimido não são absorvidos. Ele também citou a comodidade para as pacientes, já que algumas se esquecem de tomar um medicamento por via oral diariamente.
O médico urologista Eduardo Pimentel afirmou ser a favor do uso da testosterona em caso de deficiência desse hormônio, mas se colocou contra o uso para elevar a testosterona em quem tem níveis normais, especialmente com o objetivo estético ou de ganho de massa muscular. Pimentel defendeu a responsabilidade no uso desse tipo de tratamento e uma regulamentação do tema para evitar abusos.
Os médicos que participaram da sessão também defenderam o uso de implantes para os sintomas da menopausa, entre eles as ginecologistas Juliana Paola, Danielli Simonassi Nantes e Alessandra Clarizia. Na visão de Alessandra, é preciso escutar as queixas das pacientes que sofrem com os sintomas, já que algumas delas não se adaptam a outras vias de administração.
— É exatamente nesse contexto que adotamos a opção da reposição hormonal por meio dos implantes. É sempre o que for melhor para cada paciente, com a responsabilidade de acompanhamento médico sistemático e contínuo. Como médica, eu tenho dever de acolher e ser capaz de tratar as queixas que elas me trazem, como ansiedade, calor noturno, suor de encharcar a roupa, falta de concentração, perda de libido e de memória, enfim, elas não se reconhecem mais — disse Alessandra, que apontou a menopausa como algo negligenciado no país.
A fundadora da Associação Menopausa Feliz, Adriana Ferreira, usuária de implante hormonal, afirmou que as pacientes que usam esse tipo de implante não foram consultadas no debate.
— Ninguém me consultou. Ninguém disse para mim o que eu iria fazer da minha vida daqui para frente. (...) Ninguém perguntou para mim se eu estava disposta a voltar a ter os 48 sintomas que eu tinha. Ninguém disse para mim o que de fato eu deveria fazer daqui para frente, se eu vou ter que entrar com uma ação judicial para poder cuidar da minha saúde — lamentou.
A paciente Karina Porto fez um alerta durante a sessão. Ela começou a usar implante em 2022, para tratar sintomas da menopausa. Na ocasião, o médico apontou vários benefícios estéticos e chamou o implante de "chip da beleza". Apesar da preocupação por só ter um rim, ela aceitou a sugestão e colocou o chip, mas pouco tempo depois teve problemas como aumento no peso, surgimento de pelos no corpo, acne e engrossamento da voz. O pior efeito veio menos de dois meses após a colocação: trombose e infarto renal.
— Sou a favor dos estudos científicos. Sou contra o que aconteceu comigo e que pode acontecer com outras pessoas. Hoje eu vivo com um pedaço de rim, eu tive depressão e síndrome do pânico, eu vivo em hospital (...). Há dois anos e meio eu vivo o drama dos efeitos do implante, do "chip da beleza".
Outros médicos presentes defenderam a realização de mais estudos sobre os implantes hormonais para garantir a segurança e o tratamento dos pacientes. Um deles foi o ginecologista Etelvino de Souza Trindade, presidente da Academia de Medicina de Brasília (AMeB).
— Nós gostarímos muito que esse assunto fosse estudado no âmbito devido. E o âmbito devido é dentro da ciência. Esse é o nosso apelo: que isso seja resolvido cientificamente. Uma norma legal absoluta pode engessar o avanço da ciência, o que não é adequado sob o ponto de vista da medicina.
Outra ginecologista, Roseli Nomura, diretora administrativa da Febrasgo, afirmou não ser contra o uso de hormônios, mas disse que é preciso ter segurança e responsabilidade. E, para isso, são necessários estudos clínicos. Ela pediu a responsabilização de médicos que agem fora dos limites.
O cardiologista Leandro Echenique também defendeu mais estudos sobre o tema para garantir a segurança dos usuários de implantes e disse que todos os médicos precisam estar do mesmo lado, o do paciente.
—É urgente a necessidade desses estudos para que todos nós tenhamos segurança e possamos prescrever para os pacientes de forma muito transparente. (...) Todos nós temos que estar do mesmo lado. No final, aqui não tem um contra o outro, nós todos estamos do lado dos nossos pacientes e queremos que não haja risco para saúde, que é o bem mais precioso que se tem — defendeu.
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